Due diligence imobiliária 5.0: como tecnologia e compliance estão redefinindo as auditorias legais no Brasil

20.09.2025
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Nos últimos anos, a due diligence imobiliária brasileira deixou de ser um checklist centrado na matrícula e em tributos para se tornar uma auditoria legal ampliada, intensiva em dados e integrada a práticas de compliance. A virada tem três motores:

(i) a digitalização do ecossistema registral com o SERP (Sistema Eletrônico dos Registros Públicos) que encurta prazos e padroniza fluxos;

(ii) a chegada de ferramentas de big data e IA capazes de ler milhares de páginas, extrair campos de matrículas e cruzar bases públicas e privadas em minutos; e

(iii) uma mudança cultural que incorporou, ao escopo mínimo de análise, conformidades ambiental, urbanística e trabalhista do empreendimento. O resultado é um processo mais ágil, comparável e previsível, desde que os profissionais jurídicos mantenham a curadoria crítica sobre os achados algorítmicos e garantam a força probatória das conclusões.

A infraestrutura regulatória viabilizou a evolução. A Lei 14.382/2022 instituiu o SERP, redesenhou procedimentos registrais e abriu caminho para o atendimento remoto, o protocolo eletrônico e a interoperabilidade das serventias. O CNJ vem implementando o sistema e detalhando sua governança por provimentos. Nesse contexto, o setor registral passou a incorporar inteligência artificial para extrair dados de matrículas (a IARI, do Operador Nacional do Registro), acelerando a formação de bancos estruturados, um passo decisivo para auditorias com base em dados.

Se a análise documental era, antes, artesanal, hoje ela é assistida por máquinas. Plataformas brasileiras de documentação jurídica automatizam a coleta de certidões e a leitura semântica de contratos e atos registrais, sinalizando ônus, indisponibilidades, sobreposições de área, hipotecas e gravames recorrentes. Casespúblicos mostram reduções drásticas de prazo quando a coleta e a classificação são automatizadas e a equipe jurídica se concentra na análise de materialidade e nas condições precedentes contratuais. Há relatos de operações que saíram de ciclos de “duas a três pessoas por pelo menos 15 dias” para poucos dias, com dashboards que ranqueiam riscos por criticidade, ganhos difíceis de alcançar sem IA e pipelines de dados.

A transformação, contudo, não matou a due diligence. Parte da doutrina chegou a perguntar se, com a modernização trazida pela MP 1.085/2021 e pela Lei 14.382/2022 (e a robustez da publicidade registral), a diligência teria perdido espaço. A resposta de profissionais de mercado é negativa: a própria jurisprudência e a prática mostram que a matrícula não esgota os riscos. Há passivos e restrições extra-fólio (ambientais, urbanísticos, fiscais, trabalhistas) que ainda exigem investigação qualificada.

Nesse “novo normal”, a due diligence ampliou seu escopo mínimo. Do lado ambiental, o ponto de partida é o licenciamento (Resolução CONAMA 237/1997), que sujeita a obra ou atividade potencialmente poluidora a licenças prévia, de instalação e de operação. Soma-se a isso a gestão de resíduos de construção civil regulada pela CONAMA 307/2002 e pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010), que impõem planos e destinação adequada, temas que impactam responsabilidade do empreendedor e podem gerar condicionantes contratuais.

No eixo urbanístico, a diligência deixou de “supor” conformidade e passou a comprová-la com documentos municipais: certidões de uso e ocupação do solo/zoneamento, alvarás e habite-se (certificado de conclusão). Em São Paulo, por exemplo, a prefeitura disciplina a certidão de zoneamento e a emissão do habite-se. Outras capitais e municípios mantêm portais equivalentes. A validação do pipeline urbanístico evita surpresas na exploração do ativo (p.ex., restrições de uso, vagas, gabarito, atividades especiais).

Já no vetor trabalhista/previdenciário, o foco está nos passivos da cadeia de obras e conformidade de canteiros, em especial sob a NR-18 (segurança e saúde na construção). Uma auditoria diligente verifica histórico de autuações e acidentes, políticas de SST de empreiteiros, documentação de retenções e garantias contratuais, fatores que, além de jurídicos, influenciam seguro, viabilidade e cap rate.

Os casos brasileiros ajudam a tangibilizar a mudança. No registro de imóveis, a IARI passa a ler imagens de matrículas e transformá-las em dados estruturados, prometendo certidões de situação jurídica geradas com apoio de IA, um ganho que desburocratiza fluxos e aumenta a confiabilidade dos insumos usados pelas equipes de due diligence. No mundo privado, legal-techs nacionais documentam reduções de prazo e padronização de análises ao combinar coleta automatizada e leitura por IA relatando, em estudos de caso, encurtamento de semanas para dias no levantamento massivo de documentos e na classificação de riscos para grandes incorporadoras.

Isso não reduz o papel dos juristas, ao contrário, o eleva. Se a máquina enxerga padrões, cabe ao advogado ponderar materialidade, testar hipóteses e redigir salvaguardas. É ele quem valida cadeias de custódia digital (hash, carimbo do tempo, logs), define matrizes de risco, negocia covenants e condições precedentes proporcionais aos achados e escolhe entre liberar, condicionar ou desistir do negócio. Também é do jurídico a responsabilidade de explicar o que o algoritmo não “sabe”: conflitos fundiários não documentados, servidões de fato, ocupações irregulares, ou impactos reputacionais que a IA não capta fora das bases-fonte.

Do ponto de vista estratégico, a due diligence 5.0 recomenda três ajustes operacionais imediatos. Primeiro, arquitetura de dados: equipes comerciais, técnicas e jurídicas precisam alimentar um repositório único, versionado e auditável, com documentos oficiais e trails probatórios, algo que o SERP e as rotinas digitais dos cartórios favorecem. Segundo, contratos orientados a risco: os relatórios saem do PDF e entram no term sheet, com condições precedentes objetivas (regularizações ambientais/urbanísticas, baixas de ônus, CNDs críticas) e cláusulas de reps & warranties ajustadas ao perfil do ativo. Terceiro, governança de terceiros: fornecedores de coleta e de IA precisam de SLAs, segurança da informação e explainability, o jurídico responde também pelo que terceiriza.

Em suma, a auditoria legal imobiliária evoluiu de um “exame de documentos” para um processo analítico, multidisciplinar e data-driven. A tecnologia encurta a trilha, mas não substitui o julgamento: é a leitura jurídica, informada por ambiente, cidade e trabalho que transforma dados em decisões. Quem combinar SERP com IA e compliance setorial com curadoria técnica chegará mais rápido ao mesmo ponto que sempre importou: reduzir risco, ganhar velocidade e pagar o preço certo.

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